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Foto do escritorAloia e Almeida Advocacia

Os direitos sociais no espaço agrário Brasileiro

TERCEIRIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA DO TRABALHADOR RURAL


Por Dr. Washington Carlos d Almeida


SUMARIO: INTRODUÇÃO. 1. OS DIREITOS SOCIAIS NO ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO CONFLITAM COM A TERCEIRIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA DO TRABALHADOR RURAL. 2. DIREITOS SOCIAIS DO TRABALHADOR RURAL, CONFLITOS E JUDICIALIZAÇÃO. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INTRODUÇÃO


O território brasileiro é o maior da América latina em extensão de terras, contudo seu espaço agrário é marcado por diversos tipos de contrastes. Desde o início da colonização de nosso país observamos que, já no século XVI com a divisão do território em capitanias hereditárias, numa experiencia de preencher o grande espaço geográfico, tem início a concentração de terras. Inicialmente as primeiras lavouras desenvolvidas em solo brasileiro eram de cana-de-açúcar, e ocupavam a zona da mata nordestina (litoral).


Elas se baseavam no sistema de plantations, que consistia em grandes monoculturas (apenas um cultivo), com o emprego da mão de obra escrava, cuja produção destinava-se à exportação, contudo as únicas capitanias hereditárias que alcançaram modesto desenvolvimento atingindo parte do esperado foi São Vicente e Pernambuco.


Seguindo a linha da história em meados do século XIX, tivemos uma tentativa de regularizar a posse da terra em nosso país, foi promulgada a chamada Lei de Terras, que determinava que a posse da terra só seria reconhecida mediante compra. Com essa medida, pretendia-se eliminar a usucapião, ou seja, a titulação da posse da terra pela ocupação, sem a compra efetiva da mesma. Os maiores beneficiados dessa medida foram os membros da elite agrária brasileira, que expandiram suas propriedades, elevando a concentração de terras no país.


Ao chegarmos à segunda metade do século XX, eclodiram reformas agrárias em toda América Latina e central, como no México e na Bolívia. Com o final da segunda grande guerra mundial, em 1945, e com a divisão do mundo em duas grandes divergências políticas e econômicas, de um lado a extinta URRS, que era governada por um regime unipartidário altamente centralizado e comandado pelo Partido Comunista e tinha como sua capital a cidade de Moscoue, de outro, representando o capitalismo os EUA e os países aliados, no Brasil, crescia o temor de uma revolução camponesa, que traria como consequência a reforma agrária. Em 1964, os militares recém-chegados ao poder, elaboram o Estatuto da Terra, uma tentativa de apaziguar os ânimos dos camponeses brasileiros por uma reforma na distribuição de terras. O Estatuto previa basicamente a execução da reforma agrária brasileira, mas não estabelecia prazos para que isso acontecesse.


O aumento da produção agrícola implicou também no significativo crescimento da concentração de terras, bem como do poder econômico. As dificuldades na obtenção da terra produziram uma massa de excluídos, além de grande desigualdade e pobreza no campo, faltou investimentos em novas tecnologias e capital para subsidiar as médias e pequenas propriedades agrícolas na criação de novas lavouras.

A estrutura fundiária de um país diz respeito à distribuição e ocupação da terra, bem como às questões sociais presentes no campo, sendo correto afirmar que os direitos sociais caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, buscando sempre a melhoria das condições de vida daqueles que nela se firmam, com objetivo principal da igualdade social, configurando um dos fundamentos do nosso Estado democrático.


A produção agrícola no Brasil está organizada basicamente em dois modelos, a agricultura familiar e agricultura comercial que se baseia na produção em larga escala das chamadas commoditiesagrícolas, tendo como principal produção a soja, milho e café, produtos com grande demanda mundial e com valores bem definidos pelo mercado.


O emprego da tecnologia e mão de obra barata garante a esses produtores agrícolas grande eficiência na produção, o que também repercute em lucros elevados. Na atividade rural é lícita a terceirização de atividades quando observado, em um primeiro momento, o disposto no art. 4 da Lei 5.899/73[1]que trata das normas reguladoras do trabalho rural, contudo recentemente em 31 de março de 2017, foi aprovada e sancionada a Lei 13.429[2]cujo objeto é a terceirização das atividades no Brasil, acrescentando e alterando dispositivos à Lei 6019 de 03 de janeiro de 1974[3], ao dispor sobre o trabalho e as relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros, embora não trate especificamente do trabalhador rural, trará alguns reflexos à categoria, como, por exemplo, a possibilidade de alteração da jornada de trabalho e dos intervalos, a mudança no prazo do contrato temporário, o pagamento das horas de deslocamento entre casa e trabalho mediante valor fixo ou outra forma de benefício, dentre outros, aliados ao fato do agronegócio ser o motor da economia nacional e, por conseguinte, necessitar de segurança jurídica nas relações entre produtores e empregados rurais, seriam as molas propulsoras da iniciativa legislativa.


Em suma, nota-se que os direitos sociais no espaço agrário brasileiro reproduzem um maniqueísmo entre o capital e os direitos fundamentais do trabalhador rural que surgiram com a necessidade de proteger o homem de eventuais arbitrariedades cometidas pelo Poder Público e a compelir o Estado a tomar um conjunto de medidas que impliquem melhorias nas condições sociais do trabalhador rural.


1. OS DIREITOS SOCIAIS NO ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO CONFLITAM COM A TERCEIRIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA DO TRABALHADOR RURAL

Os direitos sociais surgiram com a necessidade de proteger o homem do poder estatal, a partir dos ideais advindos do Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, mais particularmente com as concepções das constituições escritas. A teoria dos direitos fundamentais, como conhecemos hoje, é o resultado da lenta e profunda transformação das instituições políticas e das concepções jurídicas, MORAES preceitua que estes surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos filosóficos-jurídicos, das ideias surgidas com o cristianismo e com o direito natural[4].


A luta contra o poder absoluto dos soberanos e o reconhecimento de direitos naturais inerentes ao homem constituíram os elementos essenciais que vieram a desenvolver as ideias concretizadas na Declaração de Virgínia de 1776[5]e na Declaração de Direitos do Homem, proclamadas pela Revolução Francesa em 1789[6]. Assim como os ideais políticos de LOCKE, de ROUSSEAU e dos liberais que conquistaram a independência americana[7].


Podemos entender que o Direito constitucional preceitua que os direitos sociais não são a contraposição dos cidadãos administrados à atividade pública, como uma limitação ao estado, mas sim uma limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dele depende.


Os direitos fundamentais se apresentam na Constituição Federal de 1988[8]de duas formas, na forma explicita e implícita. Os direitos fundamentais explícitos na Constituição Federal são aqueles expressos formalmente, sendo que logo no preâmbulo demonstra preocupação com os direitos fundamentais e sua aplicação.


Ressaltamos que a Constituição Federal, em seu art. 5, paragrafo 2[9]prescreve que o rol dos direitos fundamentais não são numerus clausus, mas sim numerus apertus, na medida em que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros de caráter constitucional decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, se realmente expressos na Lei.


Contudo a realidade brasileira nos mostra atualmente um significativo aumento da violência nos espaços sociais agrários no tocante às violações dos direitos humanos e garantias constitucionais e trabalhistas. A desigualdade social que vigora no momento em nosso país, em especial aos trabalhadores rurais, conflita em muito com o texto constitucional previsto no artigo 5 que estabelece que “Todos são iguais perante a Lei”. A condição de submissão ao capital e a necessidade de trabalhar num país com 14 milhões de desempregados fruto de uma politica norteada pelo assistencialismo e corrupção em noventa por cento dos setores públicos e privados, impõe aos diversos grupos de trabalhadores rurais, e pequenos produtores condições sub-humanas no exercício da profissão em busca dos valores necessários a sobrevivência sua e de sua família.


A terceirização da mão de obra rural veio normatizada como uma tentativa de aplicação de uma técnica para organizar o processo produtivo, na medida em que um produtor ou empresa rural, com o objetivo de concentrar esforços em sua atividade fim, contrata outra empresa, entendida como periférica, para lhe dar suporte em serviços meramente instrumentais. A leipretende legalizar a terceirização da atividade-fim (a principal de uma empresa) pode piorar ainda mais a situação do trabalho no campo. Essa é a visão dos movimentos sociais do campo sobre o que vem sendo o foco de atenção dos trabalhadores do país.


Rotineiramente a terceirização está presente dos pequenos negócios rurais às grandes empresas, da silvicultura (carvoejamento, florestamento e reflorestamento) à produção de cana e celulose. 59,4% dos trabalhadores rurais já não têm a carteira de trabalho assinada, a carga horária é excessiva e a remuneração, baixa.


Com a vigencia da lei e a expansão da livre terceirização no país vislumbramos uma situação que beira o insustentável, devido a uma extrema fragilidade de direitos no campo. Dos trabalhadores sem carteira assinada, 40% estão em empregos temporários, na informalidade.


Outro ponto levantado de conflito entre os direitos sociais e a terceirização da mão de obra rural diz respeito à fragilidade da relação entre empregado e empregador. Temos uma convenção coletiva que obriga todo empregador a pagar pelo menos um salário mínimo para o trabalhador rural, hoje, de R$ 937,00. Sabemos que, na prática, isso não funciona como deveria, porque não existe nenhuma fiscalização nesse sentido. Com a terceirização, isso vai piorar, uma vez que as empresas terceirizadas não entram nesse acordo. Isso vai causar uma redução sistemática de ganhos, conforme nosso entendimento.

A alta taxa de acidentes de trabalho no campo é outra questão a ser levantada. O aumento do consumo de agrotóxicos (há cerca de 6 mil casos registrados por ano de intoxicação) e o excesso de esforço, fruto do trabalho por produção (onde o trabalhador ganha mais pela quantidade que produzir), são algumas das causas de acidentes, doenças e mortes no meio rural.


Sergio PINTO MARTINS, ressalta: “terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituem o objeto principal da empresa. Essa contratação pode compreender tanto a produção de bens, como de serviços, como ocorre na necessidade de contratação de empresa de limpeza, de vigilância ou até para serviços temporários” [10].


A dúvida surge acerca do que vem a ser serviços determinadose específicos. Sob o aspecto da literalidade, o legislador, de fato, pretendeu autorizar o uso da terceirização geral para qualquer atividade, seja ela de meioou fim, da mesma forma que permite a terceirização de atividade-fim e atividade-meionos casos de trabalho temporário.

Os trabalhadores rurais também terão mais dificuldades de se sindicalizar. Atualmente, dos 4 milhões de assalariados rurais, apenas 591 mil (14,6%) declararam ser sócios de algum sindicato, e os informais, pela dificuldade de criar vínculos empregatícios, se distanciam do movimento.


As consequências negativas causarão danos irreparaveis aos programas sociais desenvolvidos para o campo brasileiro.


A reforma agrária está paralisada e a atual demanda social para a resolução dos conflitos no campo é pequena, poderá ocorrer que com a aprovação desse texto, dentre outras coisas, incentivar-se-á a criação de associações em empresas fantasmas. Adicionamos a isso as medidas provisórias 664 e 665[11], que restringem o acesso ao abono salarial e ao seguro desemprego, e temos um cenário terrível para o trabalhador do campo, isso sem falar na contribuição para o crescimento do agronegócio, que infunde a lógica capitalista em todo o campo e vem em detrimento do projeto de agricultura familiar, que é o que de fato traz sustentabilidade ao trabalhador rural.


No tocante aos conflitos inerentes à produção, ocupação do espaço agrário brasileiro, em relação aos direitos sociais do trabalhador rural gera um ambiente de insegurança, sendo reforçado pelo avanço de outros projetos legislativos que atuam na mesma área de trabalho terceirizado e temporário. Esses projetos não se mostram nem asseguradores de direitos, nem atuam na orientação constitucional de avanço do Direito do Trabalho. 



2. DIREITOS SOCIAIS DO TRABALHADOR RURAL, CONFLITOS E JUDICIALIZAÇÃO

As mudanças advindas pela Lei 13.429 de 31 de março de 2017[12] seriam mínimas e até justificariam uma reflexão mais detida, ou certamente a expectativa de que empregados e empregadores a elas gradualmente se acomodassem, não fosse a confusa e mal disfarçada tentativa de revogar, pela atuação de sindicatos não raro debilitados por sistema sindical parcialmente esclerosado ou pela crise de empregabilidade, direitos historicamente conquistados e convertidos em preceitos constitucionais ou legais no Brasil e em tantos países que investem na evolução de seu patamar civilizatório por meio da afirmação dos direitos sociais.


Há aspectos positivos na referida lei, a exemplo da elogiável intenção de elevar as multas administrativas aplicáveis aos empresários que deliberadamente descumprem as obrigações trabalhistas.


Entendemos ainda que parece justa a pretensão de igualar o período de férias dos empregados contratados a tempo parcial aos empregados com jornada integral; e é bem aventurada, a nosso ver, a proposta de modificar os arts. 2 e 19 da Lei 6.019/1974[13]para finalmente permitir que o trabalhador temporário possa ser diretamente contratado pela empresa tomadora dos serviços, sem a (onerosa) terceirização a que se obrigavam os empregadores há mais de quarenta anos - e, nesse ponto, de modo a permitir que as empresas de trabalho temporário se consolidem no mercado como uma alternativa (não imposta) de gestão empresarial, à semelhança do que sucede em vários países europeus.

Afora esses aspectos, a redação da lei não dissimula o interesse de entregar à generalidade dos sindicatos o poder de reduzir direitos trabalhistas instituídos recentemente em nossa ordem normativa.


É curioso notar que não houve, por parte da Presidência da República, algum esforço para tentar reestruturar o sistema sindical brasileiro, que data do início do século passado e preserva regras de investidura e financiamento de entidades sindicais forjadas para atender a um modelo corporativo e autoritário que, naquele tempo, inseria os sindicatos como órgãos do Estado e por isso os queria únicos por categoria e base territorial, além de sustentados por imposto que é hoje eufemisticamente chamado de contribuição sindical.

Há de se ponderar que não é fácil mexer nessa estrutura, de origem fascista, sem comprometer a força de sindicatos que, apesar dela ou sabendo valer-se de suas pontuais virtudes, revelam-se idôneos e com inquestionável capacidade de negociação, a exemplo do que ocorre a metalúrgicos, bancários, petroquímicos, postalistas, aeronautas e tantos outros.


O que não se pode esconder é que, segundo o IBGE (censo 2001/2002)[14], metade dos sindicatos brasileiros jamais participou de negociação coletiva e sobrevive, portanto, essencialmente para arrecadar a contribuição sindical obrigatória.


A esses sindicatos de fachada, em número tão expressivo, também se estaria entregando a tarefa de suprimir ou reduzir direitos que a lei considera indisponíveis porque afetos ao valor social da livre iniciativa e à existência digna – princípios jurídicos que os arts. 1, IV e 170 da Constituição[15]consagra e associa ao postulado universal da dignidade humana.

Uma pergunta inevitável: de quando datam os direitos trabalhistas que o novo art. 611-A da CLT, segundo a lei aprovada, propõe sejam flexibilizados? A resposta pode surpreender: as regras sobre férias remontam a 1977, com mudanças importantes por meio da ratificação pelo Brasil da Convenção 132 da OIT (em 1999)[16]e também de alterações na CLT ocorridas em 2001[17]


Os artigos da CLT que tratam de jornada e do banco de horas foram introduzidos pela Lei 9.601, de 1998[18]. A Lei 10.101, que regula a participação em lucros e resultados, foi editada no ano 2000[19]. As horas de deslocamento, ou horas in itinere, foram convertidas em lei em 2001, após longa evolução jurisprudencial. Os dispositivos da CLT que versam sobre intervalo intrajornada sofreram ajustes a partir de 1994[20].


Em rigor, data de 1943, ou de antes disso, apenas o modelo monista de organização sindical, cujo aperfeiçoamento não parece interessar - malgrado a ele se pretenda oferecer a prerrogativa de promover o derretimento dos direitos previstos em lei.


Sob enfoque acadêmico, a escolha dos direitos que poderiam ser flexibilizados, a partir do dispositivo (art. 611-A)[21]proposto no citado projeto de lei, parece um convite à formação de novos litígios. A começar pela cabeça do artigo, que prediz terem as convenções e acordos coletivos “força de lei” quando tratarem de tais ou quais temas. Na verdade, as convenções e os acordos coletivos sempre têm a mesma força da lei em relação a todos os temas, e vice-versa.


Com base no caput do art. 7 da Constituição[22], prevalecerá sempre a norma que mais tenha avançado na proteção do trabalhador quando duas ou três dessas normas houver regulado, por exemplo, “trabalho remoto”, “remuneração por produtividade” ou “registro da jornada de trabalho”.


Para não incorrer nesse erro reducionista, o art. 3 do Código de Trabalho português[23]preferiu enumerar os direitos que não podem ser afastados por regulamentação coletiva (entre eles incluindo a duração diária e semanal do trabalho e o tempo de intervalos ou de repouso, inclusive férias) em vez de catalogar, como faz o projeto de lei ora comentado, os direitos que podem ser regulados por norma coletiva. Todos podem!


O que às vezes não parece percebido, pelos arautos da reforma trabalhista no Brasil, é que leis e normas coletivas, indistintamente, submetem o seu conteúdo, aqui e no resto do mundo ocidental, ao exame de validade pelo Poder Judiciário (como, aliás, reconhece o texto proposto para o art. 611-A, §4º)[24]. Só o mundo do trabalho permite que a eventual inapetência ou demora do legislador estatal seja suprida pela autodeterminação dos atores sociais, por meio de norma genérica e abstrata.


Não há novidade, portanto, na ênfase ao “princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”, salvo se o interesse for o de desvirtuar a finalidade do direito à proteção por normas coletivas de trabalho e precarizar, por essa engenhosa via, a tutela do trabalhador que participa, por vocação ou por instinto de sobrevivência, da relação sempre assimétrica de emprego.


O primeiro direito a ser flexibilizado, pela proposta do Poder Executivo, seriam as férias, especialmente quanto à possibilidade de serem partidas em três pedaços, um deles equivalente a duas semanas. A exigência de que um dos períodos de ferias seja de no mínimo duas semanas revela a fonte de inspiração do governo: a Convenção 132 da OIT – Organização Internacional do Trabalho[25].


O Brasil ratificou a Convenção 132 da OIT[26]e isso a faz revestida de supra legalidade, segundo o STF[27]. Em seu art 8.1, a Convenção 132 autoriza o fracionamento de ferias somente mediante autorização "pela autoridade competente ou pelo órgão adequado de cada país". Difícil entender que lei ordinária poderá revogar essa regra supralegal, ou seja, hierarquicamente superior a qualquer lei.


 Outro direito passível de flexibilização seria o “cumprimento da jornada de trabalho, limitada a duzentas e vinte horas mensais”. Não entenderam, tudo indica, que o empregado recebe 220 horas por mês porque nelas estão incluídas as horas de labor e igualmente as horas de repouso remunerado (em domingos e feriados). O cálculo é muito simples: 44 h/sem ÷ 6 dias/sem = 7,33 h/dia x 30 dias/mês = 220 horas/mês.

Ao multiplicar por 30 (dias/mês), apura-se, portanto, a quantidade de horas trabalhadas e também as de repouso remunerado. Não há fórmula matemática que permita trabalhar-se 220 horas/mês sem extrapolar-se o limite de 44 horas/semana estabelecido pelo art. 7, XIII, da Constituição[28].


O mês, no calendário gregoriano, não pode ter mais de 31 dias e, portanto, contém no máximo 4,4285 semanas (31 ÷ 7), o que equivale ao máximo de 194,85 horas de trabalho (4,4285 x 44 h). Supõe-se que o projeto de lei não pretenda derrogar o limite constitucional de 44 horas de trabalho semanais, nem a lógica aritmética.


A Justiça do Trabalho[29]tem validado cláusulas normativas que dispõem sobre horas in itinere (ou horas de deslocamento casa/trabalho) ou sobre progressões horizontais (não se sabe por que o projeto de lei trata o “plano de cargos e salários” como se não fosse ele uma espécie de “regulamento empresarial”) sempre que não resvalam para além dos lindes do absurdo, ou da razoabilidade, a exemplo de cláusulas que reduzem a quinze minutos o tempo de cinco horas de deslocamento casa/trabalho (sem transporte público) ou de cláusulas que autorizem o empregador a violar acintosamente o princípio da isonomia ao promover, sem qualquer critério objetivo (único ou alternativo), alguns empregados em detrimento de outros que, até mais antigos, prestam serviço em iguais condições. Espera-se que o projeto de lei não pretenda legitimar o abuso patronal, onde houver.


A existência de cláusula que defina quais os direitos que continuarão vigorando (ou seja, revestir-se-ão de ultra atividade) após o termo final de vigência da convenção ou do acordo coletivo deve mesmo ser estimulada, como pretende o projeto de lei. Isso não impede que a ultra atividade prevaleça sempre que a norma coletiva for omissa.

Assim está consagrado na Súmula 277 do TST[30]e acontece em inúmeros países que valorizam e incentivam a negociação coletiva (se não há ultra atividade, o empregador obtém a revogação de todos os direitos historicamente conquistados pela categoria pelo só fato de recusar-se a participar da negociação coletiva de trabalho).


Alguns direitos que foram incluídos entre os susceptíveis de flexibilização carecem de algum esclarecimento: se a participação em lucros e resultados não pode ser paga em mais de duas parcelas no mesmo ano civil (art. 3, §2 da Lei 10.101/2000)[31], como poderia o mesmo acordo coletivo que instituiu a PLR estabelecê-la mediante pagamentos “não inferiores a duas parcelas”?


Se é de fato rigorosa a adesão ao Programa de Seguro-Emprego (Lei 13.189/2015)[32], pode a convenção ou o acordo coletivo relativizar esse rigor e assim onerar as finanças públicas sem observar o princípio da legalidade? Há realmente “banco de horas” se está prevista a conversão em hora extra do tempo excedente da jornada legal? 


Vale a pena citar ainda a previsão de que o intervalo intrajornada poderá ser de apenas trinta minutos, se assim dispuser norma coletiva. O art. 71 da CLT[33], não sendo derrogado, continuará condicionando a redução do intervalo mínimo de uma hora à fiscalização do Ministério do Trabalho - hoje encimado pelo governo que apresentou o projeto de lei [34]- a fim de o órgão fiscalizador verificar se a redução do intervalo dá-se em empresa que oferece refeitório e condições adequadas, sem cobrança de horas extras, ou seja, sem prejuízo da saúde física e psicológica do trabalhador; fora isso, teremos sindicatos débeis ou debilitados que ajustarão jornada extraordinária e exaustiva, com meia hora de intervalo, em troca de um fardo de potes energéticos, talvez de um vale-jazigo.


A propósito, o projeto de lei prevê a exigência de cláusula compensatória explícita sempre que flexibilizados direitos trabalhistas relacionados ao salário ou à jornada, inclusive quando envolverem a prorrogação de turnos ininterruptos de revezamento. Bons auspícios!

A medida está em consonância com copiosa jurisprudência que entende nula tal flexibilização quando evidenciado que não houve qualquer contrapartida em favor dos trabalhadores. A anulação da cláusula compensatória quando anulada a cláusula de flexibilização atende ao princípio da equidade e, a meu ver, a proposta, no que toca à relativização de direitos indisponíveis, poderia ter-se resumido a esse ponto.

É uma pena, enfim, que a Exposição de Motivos da proposta governamental[35]faça remissão ao art. 7, XXVI, da Constituição[36], este a consagrar o direito fundamental de trabalhadores a convenções e acordos coletivos de trabalho. As normas coletivas servem à melhoria da condição social do trabalhador urbano ou rural, conforme enuncia o art. 7, caput, da Constituição[37].


Somente uma interpretação pedestre de tal preceito (art. 7, XXVI, da CRFB)[38]poderia conduzir à exegese de que haveria, por simetria, um direito fundamental de empresas reduzirem ou eliminarem direitos trabalhistas por meio de normas coletivas que estariam imunes à análise de sua validade, inclusive quanto à conformidade com os valores e princípios constitucionais. Embora pareça démodé, dá-se ao emissor da proposta a presunção de inocência.


O sistema judiciário é um dos fatores que contribuíram para o surgimento do trabalho temporário, bem como as transformações ocorridas no processo de produção agropecuária, impulsionado pela "modernização da agricultura" nos anos 60. O conjunto desses novos trabalhadores que surgiram no bojo destas transformações forma um segmento dentro do mercado de trabalho agrícola. As atividades sazonais inerentes à agropecuária requerem um sistema de contratação que respeite essas características.


No caso específico das cooperativas de trabalho, diante da discussão apresentada, verifica-se que a atuação das instituições jurídicas introduz um componente potencial para limitar a contratação dos serviços de cooperativas de trabalho. Portanto, o segmento dos trabalhadores temporários está em completa transição em termos jurídicos, enquanto agentes econômicos formam um mercado fundamental para empresas rurais. Os custos de transação em recorrer ao mercado de trabalho fazem parte do processo de coordenação das atividades das empresas agrícolas. Os custos potenciais imputados pelas instituições jurídicas tendem a reduzir a utilização dessa modalidade de contratação, ocorrendo a migração para outras modalidades ou mesmo estimulando o surgimento de novos arranjos contratuais, como é o caso dos consórcios de empregadores rurais, que reduzem o comportamento oportunista.


As regras jurídicas estabelecem ordenamento e sobrevida das relações trabalhistas em longo prazo, aceitando que elas são produto da vivência dos agentes econômicos envolvidos e das instituições. Os trabalhadores não-qualificados, os quais apresentam reduzido poder de barganha e baixíssima especificidade de capital humano, são fortemente dependentes da efetividade das instituições jurídicas para moldar o sistema de contratação do trabalho temporário agrícola.



3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Ainda há muito a se discutir para que seja verificado se a situação do trabalhador rural piorará ou melhorará com a reforma trabalhista e a novel lei de terceirização, que permite a terceirização de atividades fim, como a do agricultor.


O espaço agrário brasileiro, inserido no contexto mundial atual, reflete as contradições originadas a partir do embate entre o capital e o trabalhador rural, de modo que os movimentos sociais de luta pela terra são obrigados a subordinarem-se à dinâmica reprodutiva do capital. Notadamente, esta circunstância de submissão ao capital, atribuída à classe trabalhadora - aqui especificamente abordada no meio rural, suscita a sua indignação, materializando-se em diversas manifestações contra a expropriação da mão-de-obra no campo, contra a concentração fundiária e a hegemonia do grande capital, personificado nas atividades do agronegócio.


Os grandes produtores rurais comemoraram a aprovação da novel lei da terceirização, aduzindo que o objetivo da terceirização não é simplesmente reduzir salários, mas que se trata de instituto vocacionado à busca do aumento da produtividade, que permite a especialização das atividades do trabalhador e a melhor alocação dos recursos humanos e materiais e da tecnologia pelo empresário, não devendo ser visto como um instrumento de “luta de classes”, ou ainda de “exploração dos pobres”, mas, sim, de melhor gerenciamento de custos e de desempenho.


Acreditamos que este seria o momento de nossos governantes pensarem em políticas efetivas que revertessem tamanha desigualdade dentro do mundo rural, e não ampliá-la ao retirar ainda mais direitos dos trabalhadores do campo. Infelizmente, o ritmo dos assentamentos rurais vem caindo nos últimos governos e, por sua vez, a concentração de financiamentos, crédito, acesso a maquinários e equipamentos, entre outros, aumenta safra após safra em favor dos grandes latifúndios.


Ou seja, o momento não é de reverter os direitos dos trabalhadores rurais, que já são ínfimos, mas de tentarmos reverter a desigualdade no campo, atendendo aos comandos constitucionais, obedecendo-se aos direitos fundamentais e, sobretudo, à dignidade da pessoa humana.


[1]BRASIL. Lei 5.899, de 05 de jul. de 1973. Dispõe sobre a aquisição dos serviços de eletricidade da ITAIPU e dá outras providências, Brasília,DF, jul. 1973.

[2]BRASIL, Lei 13.429, de 31 mar. 2017. Altera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, DF, mar. 2017

[3] BRASIL. Lei 6.019, de 03 jan. 1974. Dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas, e dá outras providências. Brasília, DF, jan. 1974.

[4]MORAES, Alexandre. Os 10 anos da Constituição Federal. Atlas, São Paulo, 1999, p. 178.

[5]Declaração de Direitos de Virgínia – Estados Unidos da América, 1776

[6]Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – França, 1789

[7]CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Princípios gerais de direito público. 2. ed. Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, p. 194.

[8]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

[9]Idem.

[10]MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 28. ed. Atlas, São Paulo, 2012, p. 192.

[11]BRASIL, Medida Provisória 664, de 30 dez. 2014. Altera as Leis no 8.213, de 24 de julho de 1991, nº 10.876, de 2 junho de 2004, nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e a Lei nº 10.666, de 8 de maio de 2003.

BRASIL, Medida Provisória 665, de 30 dez. 2014. Convertida na Lei 13.134, de 16.jun.2015. Altera as Leis no 7.998, de 11 de janeiro de 1990, que regula o Programa do Seguro-Desemprego e o Abono Salarial e institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), no 10.779, de 25 de novembro de 2003, que dispõe sobre o seguro-desemprego para o pescador artesanal, e no 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social; revoga dispositivos da Lei no 7.998, de 11 de janeiro de 1990, e as Leis no 7.859, de 25 de outubro de 1989, e no 8.900, de 30 de junho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF, jun. 2015.

[12]BRASIL, Lei 13.429, de 31 mar. 2017. Altera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, DF, mar. 2017

[13]BRASIL. Lei 6.019, de 03 jan. 1974. Dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas, e dá outras providências. Brasília, DF, jan. 1974.

[14]Disponível em www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/. Acesso em 24/07/2017.

[15]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

[16]BRASIL. Decreto 3.197, de 05 out. 1999. Brasília, DF, out. 1999.

[18]BRASIL. Lei 9.602, de 21 jan. 1998. Brasília, DF, jan. 1998.

[19]BRASIL. Lei 10.101 de 19 dez. 2000. Dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados e dá outras providências. Brasília, DF, dez. 2000.

[22]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

[23]PORTUGAL. Lei 7, de 12 fev. 2009. Disponível em http://www.unl.pt/sites/default/files/codigo_do_trabalho.pdf. Acesso em 24/07/2017.

[25]BRASIL. Decreto 3.197, de 05 out. 1999. Brasília, DF, out. 1999.

[26]Idem.

[27]PORTO, Lorena Vasconcelos. A Convenção nº 132 da OIT e o direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14,n. 2098, 30mar.2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/12546>. Acesso em: 28 jul. 2017.

[28]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

[30]Súmula nº 277 do TST: CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE. As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificados ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.”

[31]BRASIL. Lei 10.101 de 19 dez. 2000. Dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados e dá outras providências. Brasília, DF, dez. 2000.

[32]BRASIL. Lei 13.189 de 19 nov. 2015. Institui o Programa Seguro-Emprego - PSE. Brasília, DF, nov. 2015.

[33]BRASIL. Decreto -5;452 de 01 mai. 1943. Aprova a consolidação das Leis do Trabalho. Brasília, DF, mai. 1943.

[34]Idem.

[36]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

[37]Idem.

[38]Ibidem.

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