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Reflexos jurídicos do cancelamento de shows e eventos durante a pandemia


Devido à pandemia da Covid-19, festivais e turnês inteiras estão sendo cancelados ou remanejados no mundo inteiro, inclusive no Brasil, que no momento está com número alarmante de mortos diários.

No caso de eventos artísticos, cabe ressaltar que o artista possui obrigação "intuitu personae", que leva em conta suas qualidades pessoais e o direcionamento para um público específico.

Diante da impossibilidade do cumprimento da obrigação pela ocorrência de força maior, ainda, aplicando o princípio de que "ad impossibilia nemo tenetur" (que em latim quer dizer “ninguém é obrigado a fazer o impossível”), ou seja diante do quadro atual da pandemia se torna impossível cumprir a prestação e não há que se falar em perdas e danos devidas por parte dos contratados. Contudo deverá haver por parte dos organizadores do evento a devolução dos valores que tenham recebido, visto que estes, a nosso ver, não podem sequer desviar os valores pecuniários auferidos para utilização em outro show, sem a anuência do consumidor que comprou um ingresso para determinada e específica apresentação.

Não obstante tenha havido a promulgação da Lei nº 14.046, aprovada em 24 de agosto de 2020, que em suas disposições estabelece a dispensa das empresas de entretenimento da obrigação de reembolso por cancelamento de eventos durante a pandemia, podendo o valor do ingresso ser usado em crédito para eventos futuros, entendemos que tal prática não pode prosperar.

É o caso do show da artista Taylor Swift, que foi definitivamente cancelado pela cantora devido à pandemia, e que a empresa promotora do evento disse que disponibilizará aos adquirentes dos ingressos um crédito para ser utilizado no prazo de doze meses.

Antes de adentrar o exame de constitucionalidade da Lei 14.046/20, cabe sublinhar que referida lei subtraiu do consumidor a opção de reembolso da quantia já paga.

Não é certo exigir, no caso de cancelamento de eventos, que o consumidor faça a escolha pela vindoura edição do evento em data incerta, pois tal exigência corresponderia a lhe impor o pagamento por serviço que sequer sabe se poderá consumir, o que remonta a rematado disparate, devidamente vedado pelo art. 51, IV e XIII, do CDC.

Outrossim, sem possibilidade de remarcação de data certa do evento, não nos parece correto impor ao consumidor que opte por outro show no prazo estipulado pela promotora do evento. Imagine se quem comprou ingressos para o show da cantora Taylor Swift se contentaria em ver, por exemplo, o show de uma dupla sertaneja? São estilos que não agradam necessariamente àquele consumidor específico.

Entendemos que, uma vez cancelado o evento, não seria lícito subtrair do consumidor a opção de reembolso, pois contrariaria o próprio espírito da Política Nacional das Relações de Consumo, que tem por objetivo a transparência, a boa-fé objetiva e a harmonia das relações de consumo (art. 4º, CDC).

De outro lado, disponibilizar crédito para uso ou abatimento em futura compra (previsto no art. 2º, inc. II da lei n. 14.046/2020) seria alternativa também inaceitável, visto que geraria desequilíbrio na relação jurídica respectiva, pois transferiria todo o risco do negócio para o polo vulnerável da relação de consumo, ou seja, para o consumidor. Seria como querer, ao receber o pagamento do consumidor, devolver ao mesmo seu troco em balas ou chicletes.

Portanto, a lei em comento transferiu, indevidamente, ao consumidor, o risco pelo prejuízo causado pela não prestação do serviço.

Por fim, cumpre salientar que a lei n. 8.078/90 prevê, expressamente, que são nulas de pleno direito cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga (art. 51, II, CDC) e à vedação da transferência do risco do negócio a terceiros (art. 51, III, CDC).

Entendemos, portanto, que não pode ser subtraído do consumidor o direito ao reembolso dos valores pagos em caso de cancelamento de shows, visto que o art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20 é incompatível com o seu fundamento de validade e, portanto, é inconstitucional.


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